O interesse de pais, professores e amigos pelos livros servem de exemplo e estímulo em nossa formação. Pelo colaborador: Leonardo de Sá (jornalista e dramaturgo) O sinal tocava e a 4ª F subia as escadas e entrava aos poucos em uma das salas do segundo andar do Colégio Brasília. Todos se sentavam em suas carteiras e a professora Valéria apagava a luz, usando somente a iluminação do sol da tarde, que entrava pela janela, para começar sua leitura. Ela então nos instruía a ficar em uma posição confortável, muitos de nós simplesmente abaixavam a cabeça sobre os braços, apoiados na mesa, cansados da volta do recreio. E então começava: aula após aula, os vinte minutos iniciais eram tomados pela leitura de Harry Potter e a Pedra Filosofal*, de J.K. Rowling, ícone da literatura infanto-juvenil do final dos anos 90. Foi ali, com a professora Valéria, que muitos de nós iriam iniciar em suas vidas uma saga particular paralela a saga do jovem bruxo ao longo de toda a sua adolescência na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Foi em um dia qualquer que a professora Valéria, uma figura alta, de cabelo curto e sardas, começou a aula nos apresentando o livro: eu nunca tinha ouvido falar de Harry Potter e a Pedra Filosofal, e ela tampouco. Lembro do quão excitada ela estava ao contar que no dia anterior passeava na livraria do shopping quando, por acaso, travara contato com aquele livro. Abrira e lera as primeiras páginas, e ficara tão encantada com a narrativa que resolvera ler para seus alunos do Ensino Fundamental. Com aquele gesto, a professora se tornou responsável por desenvolver em mim um leitor ávido porque, como Sherazade, a personagem fictícia de As mil e uma noites**, inoculou em todos nós da 4ªF a curiosidade por saber o fim da história. Movido por este estímulo, eu não aguentava mais esperar as aulas seguintes para saber o destino de Harry, e pedi a minha mãe que me comprasse o livro. Alguns colegas também o fizeram, e passamos a levar nossos exemplares para a aula, a fim de acompanhar a leitura. Em casa, porém, nós avançávamos nos capítulos. Alguns de nós, que já haviam terminado de ler, passaram a emprestar seus exemplares para os colegas que não o possuíam. Se Sherazade contava trechos das suas histórias e as interrompia no clímax para garantir que o Rei Xariar não a matasse ao final de cada noite, a professora Valéria não tinha em nós o seu algoz, muito pelo contrário: como professora, possivelmente seu intuito era mesmo que não a esperássemos, que fôssemos atrás do conhecimento, de maneira autônoma, que nós mesmos começássemos a ler por nossa conta própria o livro Quando a maioria da turma já tinham lido suas versões de Harry Potter ou estava na posse de um exemplar emprestado, a professora Valéria parou de realizar a leitura no seu início de aula. Minha marcante história pessoal encontra um interessante respaldo na quarta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro. Segundo os dados elencados, a professora ou o professor são citados como os maiores influenciadores da leitura na vida dos leitores. “A pesquisa revelou a importância do professor (leitor) no despertar do interesse pela leitura . Aqueles que ficaram na memória como os principais influenciadores, certamente, marcaram presença ao propor leituras que despertaram a paixão pelos livros e narrativas; hoje, mais do que nunca, é preciso que esse profissional seja valorizado como um dos principais mediadores da leitura e responsável pela disseminação do livro no país”, nos afirma Zoara Failla, coordenadora da pesquisa. Para esta análise, leitores são todos aqueles que leram um livro, seja ele inteiro ou em partes, nos últimos três meses. Isto é: leitores são todos que possuem o hábito de ler, que praticam a leitura, a exercitam constantemente. Ninguém “é” permanentemente um leitor, mas, pelo contrário, todos “estão sendo”, continuamente. Trata-se de um exercício processual e, para isso, estímulos são necessários: o acesso aos livros, o tempo pra ler e, o mais importante, a curiosidade pelas narrativas, conteúdos e informações que os livros guardam dentro de si precisam ser aguçadas para que a necessidade de ler surja e se mantenha dentro de cada sujeito. Quando contei para minha mãe sobre as sessões de leitura da professora Valéria, ela não hesitou em me presentear com um exemplar de Harry Potter e a Pedra Filosofal – que possuo até hoje – no qual escreveu uma dedicatória em que dizia “…os livros são objetos vivos, e devem ser cuidados”. Mais tarde, foi também minha mãe quem me apresentou uma de minhas escritoras favoritas, Clarice Lispector, através de A hora da estrela***, romance ímpar em nossa literatura sobre a trajetória de Macabéa, imigrante nordestina perdida em meio ao caos urbano do Rio de Janeiro que vê na previsão de uma cartomante a redenção para sua vida sem sentido. A influência da mãe na formação do gosto por literatura também aparece como fator decisivo para cerca de 11% dos leitores entrevistados na pesquisa Retratos da Leitura. Cerca de 26% dos entrevistados afirma que sempre viam a mãe lendo, e 17% presenciavam o pai exercendo tal hábito. De certo modo, a influência dessas figuras dentro do ambiente doméstico é um importante pólo de estímulo para crianças e adolescentes: afinal é em casa, em um ambiente seguro, familiar e confortável, que a prática da leitura pode se dar de maneira fluída, vinculada a momentos de prazer e fruição. Por extensão, compreendemos com esse exemplo que somos estimulados a ler sempre que temos bons referenciais em nosso entorno. Cerca de 11% dos leitores entrevistados pela Retratos da Leitura afirmaram que as dicas de outras pessoas são um dos principais fatores de influência em suas escolhas literárias. No mesmo âmbito escolar em que a professora Valéria nos apresentou Harry Potter, lembro de um garoto da minha turma chamado Vinícius Bernardes, com quem eu costumava ter certas desavenças. Um dia, com o intuito de me provocar, ele me questionou a respeito do livro que eu segurava. Mostrei para ele meu exemplar de A gruta do tempo****, livro da coleção Enrola & desenrola, da Ediouro, cujas capítulos terminavam sempre com uma pergunta ao leitor. Este, por sua vez, era orientado a prosseguir a leitura pulando ou voltando algumas páginas a depender da resposta, de modo que a narrativa apresentada era diferente para cada leitor. Esse tipo de experiência literária, mais tarde eu viria descobrir, fora a tônica experimental usada pelo argentino Júlio Cortázar em seu O jogo da amarelinha*****. Tempos depois, Vinícius veio conversar comigo, animadamente, sobre os livros da coleção Enrola e Desenrola, da qual ele havia se tornado fã. Nos tornamos cúmplices no gosto por aquela coleção e trocamos ainda muitas informações sobre seus outros títulos. . Tenho, com meus amigos, um hábito interessante: ao final de cada ano, próximo às festas natalinas, nos encontramos e fazemos um “amigo-rouba-livro”, nossa mistura do tradicional “amigo secreto” com o politicamente incorreto “amigo ladrão”, em que a única regra é empregar como presente um exemplar usado de nossa biblioteca particular. Sentimos que assim conseguimos manter nossos vínculos mais fortes, seja porque os livros com os quais nos presenteamos sejam nossos, seja porque os livros que “roubamos” uns dos outros como parte da brincadeira não necessariamente serão apenas do “ladrão”, já que ao final sempre indicamos uns para os outros quais exemplares, para além daqueles que ficaram conosco, nós queremos emprestados no futuro. Dentro deste grupo de amigos, a sensação da vez é a Trilogia napolitana, da misteriosa escritora italiana Elena Ferrante, cujo primeiro exemplar, A amiga genial, ainda não tive acesso porque foi roubado de mim na última das festas. “Os livros são objetos transcendentes”, diz o compositor Caetano Veloso em uma de suas canções. Com isso, ele quer dizer que um livro é um objeto que não termina em si, sendo seu conteúdo possível de ser transmitido, emprestado, circulado, ou até mesmo discordado. Talvez seja esta sua natureza, democrática por excelência: sua capacidade de girar e gerar debates. Títulos citados *Harry Potter e a Pedra Filosofal, J.K. Rowling, Editora Rocco. **As mil e uma noites, Antoine Galland, Editora Revan. ***A hora da estrela, Clarice Lispector, Editora Rocco ****A gruta do tempo, Edward Packard, coleção Enrola e Desenrola, Ediouro. *****O jogo da amarelinha, Júlio Cortázar, Civlização Brasileira.