Mediação para formar leitores no Brasil: oportunidades urgentes via Educação

*Idmea Semeghini-Siqueira

A leitura é um direito de todo cidadão, necessário para a constituição de seres humanos plenos com aptidão para análise, crítica e potencialmente capazes de usar a imaginação, de inovar. São recorrentes essas afirmações sobre o significado da palavra ‘leitura’ como ação que dignifica o ser humano, possibilita o acesso ao conhecimento e a interação dialógica.

No Brasil, entretanto, é preciso encontrar caminhos que avancem além da aviltante constatação de que muitas crianças não desfrutam, desde o nascimento, do convívio com fontes letradas. Nesse sentido, a realização de pesquisas e propostas no âmbito das políticas públicas tem desempenhado papel relevante.

Deve-se ressaltar que as discussões sobre essa temática visam à mediação presencial, sobretudo em ambiente escolar. Atualmente, em função da pandemia da Covid-19, ainda não sabemos como será o retorno às atividades presenciais nas escolas.

Quanto à pesquisa de âmbito internacional, PISA, o Brasil tem participado desde 2000 e ocupado os últimos lugares. Os resultados têm constituído um alerta de enormes proporções sobre o grau reduzido de proficiência em leitura de nossos jovens de 15 anos egressos do Ensino Fundamental (EF).

Desde a sua segunda edição, a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro, incluiu em sua amostra as crianças de 5 a 10 anos, mantendo as várias faixas etárias até 70 anos ou mais. O objetivo central dessa pesquisa é verificar de que modos o LEITOR interage com o objeto LIVRO e, sobretudo, as oportunidades de acesso aos livros neste país em desenvolvimento.

Foram realizadas 8.076 entrevistas (dez. 2019 a jan. 2020), em todos os estados do Brasil. Para este artigo, tomamos os dados de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos, que representam 20% da população brasileira, nas faixas etárias de 5 a 10 anos (9%), de 11 a 13 anos (4%) e de 14 a 17 anos (7%). O perfil predominante nessas três faixas etárias é de alunos da escola pública (acima de 70%) e nossas análises iniciais estão focalizadas sobretudo nas crianças de 5 a 10 anos.

Com relação à escolaridade dos pais das crianças, 4% dos pais e 0% das mães são analfabetos. Concluíram até os anos iniciais do EF: 22% (pais), 13% (mães); até os anos finais do EF: 19% (pais), 25% (mães); até o Ensino Médio (EM): 37% (pais), 48% (mães); o Ensino Superior (ES): 7% (pais), 10% (mães). Não responderam 12% (pais) e 3% (mães). Quanto à renda familiar, examinando os extremos, observamos que 34% recebem até 1 salário mínimo e 1% recebe mais de 10 salários.

Tendo em vista as edições anteriores da Retratos, a porcentagem de livros lidos por crianças apresentou um relativo aumento. No entanto, questionado sobre as causas de um possível desinteresse pela leitura, o grupo de 5 a 10 anos apresentou as seguintes justificativas: sentir-se muito cansado para ler (1%); não ter um lugar adequado para ler (0,29%); não ter paciência para ler (2%); ter dificuldades para ler (4%); não ter bibliotecas por perto (4%); preferir outras atividades (5%); falta de tempo (7%); não gostar de ler (8%); não saber ler (65%). Se somarmos a esses 65% os 31% das justificativas anteriores, algumas pouco convincentes, mas que refletem insatisfação ou extrema baixa autoestima, teremos 96%. Uma porcentagem assustadora!

A partir desses dados, há fortes evidências de que duas causas estão inter-relacionadas. As fontes de letramento restritas no contexto familiar e o aporte educacional frágil, que deveria contribuir para cultivar o gosto pela leitura desde a Educação Infantil (creche e pré-escola) até os anos iniciais do EF.

Os dados da pesquisa Retratos 5 ajudam a esclarecer as causas, acrescentando mais elementos aos resultados do PISA. Ao analisarmos os dados dos jovens de 11 a 13 e de 14 a 17 anos, embora tenha havido alguma melhora em relação às edições anteriores da Retratos, as dificuldades persistem. Na questão 15, por exemplo, “Atualmente, está lendo algum livro?”, realizada para os leitores que tinham lido pelo menos um livro inteiro ou em partes nos últimos três meses, responderam afirmativamente: 51% (5 a 10 anos), 46% (11 a 13 anos) e 37% (14 a 17 anos), sendo prioritariamente livros impressos em papel, já que apenas 4% a 8% eram digitais. O interesse decrescente pela leitura de livros está documentado também em outras respostas. Isso significa que a escola, que poderia oportunizar ao jovem se tornar um leitor, impulsionando a mobilidade social, não está cumprindo seu papel em função de uma série de pontos imbricados.

Para minimizar os mecanismos de discriminação que impactam as desigualdades sociais e educacionais, é preciso recorrer a conhecimentos científicos já disponíveis, inerentes ao processo de aquisição da linguagem, sintetizado por inúmeros autores.

O desenvolvimento da oralidade, da interação dialógica (fala e escuta) e consequentemente do letramento emergente tende a ocorrer de modo natural em famílias de leitores, com amplo repertório cultural e que dispõem de recursos e de tempo para interagir com as crianças. Esse precioso tempo, dedicado pelos pais às brincadeiras, aos diálogos e progressivamente à contação e leitura de histórias, ao manuseio dos livros álbuns ou livros de Arte Visual & Literatura Infantil, amplia a memória discursiva e afetiva das crianças, nutrindo mente e cérebro, portanto, expandindo o repertório cultural e linguístico.

Tendo em vista a descrição dessas oportunidades de uso da linguagem na primeira infância, desde bebês, devemos nos perguntar: o que ocorre com as crianças das classes vulneráveis?

Para avançar na formação de leitores dessas classes afetadas pelas desigualdades sociais, há evidências de que é imprescindível investir na Educação Infantil para fortalecer o letramento emergente das crianças, neste período de intensa plasticidade cerebral, importante para a aprendizagem. Para propiciar a todas as crianças uma Educação Infantil de qualidade, o brincar, as brincadeiras e os jogos terão de predominar, permeados por inúmeros momentos de escuta de histórias, de interações orais lúdicas por meio de músicas, cantigas, poemas e parlendas, em que se recorrerá a livros e a toda variedade de recursos tecnológicos disponíveis no século 21.

Para tanto, é urgente que cada escola pública disponha de um ambiente acolhedor e instigante – Sala de Múltiplas Linguagens – bem equipado, com diversos materiais: almofadas, estantes de brinquedos, cadernos para desenhos, giz de cera e livros (impressos, digitais, em braile e em áudio). Além desses objetos, são necessários computadores e professores entusiastas com condições e tempo suficientes para imaginar projetos em que atuem como mediadores, possibilitando que as crianças apreciem livros e sejam protagonistas, criando narrativas a partir de imagens, contando histórias para seus colegas e familiares.

Podemos aventar a hipótese de que a maior parte das crianças de 5 a 10 anos da pesquisa provavelmente não teve acesso às oportunidades mencionadas, ou seja, uma família de leitores e uma Educação Infantil de qualidade. O que pode ser feito então? No decorrer do primeiro ano do EF, uma recuperação lúdica do processo de letramento emergente é possível. Esse programa intensivo para que as crianças se encantem com os livros terá necessariamente de anteceder qualquer início de propostas direcionadas à alfabetização. Dessa forma, o processo de alfabetização certamente não será sofrido, não deixará estigmas que provoquem o “não gostar de ler”. Ao contrário, essa imersão inicial no processo de leitura poderá despertar o prazer de ler e, consequentemente, o contato inicial com os conjuntos de letras móveis nas brincadeiras para a formação de palavras ocorrerá de forma harmoniosa.

Na ausência desses ambientes, o que tem acontecido? As crianças recebem lápis e papel e são convidadas a copiar letras. Tais atividades têm provocado o desencanto pela aprendizagem da leitura e da escrita, o que certamente dificultará a formação de leitores proficientes. A escola precária não permite que o desempenho melhore.

            Para criar oportunidades apropriadas às crianças, tanto da Educação Infantil (creche e pré-escola) como nos anos iniciais do EF, é imprescindível que o FUNDEB funcione como mecanismo permanente e redistributivo de financiamento da Educação, com salários dignos para professores atuarem em tempo integral (não somente com os alunos, mas também no planejamento e autoformação) e com condições inovadoras de infraestrutura nos espaços a serem denominados: Sala de Múltiplas Linguagens. Para esses ambientes, há um imenso legado de livros de literatura que encantam pessoas de todas as idades.

A educação de qualidade para crianças e jovens de escolas públicas é uma esperança e constituirá uma oportunidade objetiva para reduzir as desigualdades sociais, se voltarmos o foco para a mediação com professores capacitados, atuando em ambientes com tempo, livros e equipamentos propícios à formação de leitores.

*Idmea Semeghini-Siqueira – Doutora em Linguística e Livre Docente em Educação pela USP. Como Profª Sênior da Faculdade de Educação da USP atua na Pós-Graduação. Desde suas interações em cursos de Letras, Licenciatura e Pedagogia tem desenvolvido pesquisas, concernentes à Leitura, no âmbito da Arte & Informação / Ciência em textos impressos e hipermidiáticos, visando otimizar o uso de linguagens desde o letramento emergente na Infância. Na SEE-SP e SME-SP, atuou na formação de professores. Participou de Grupos de Pesquisa do Instituto de Estudos Avançados da USP.