CICLO DE DEBATES: “Oralidade é chave para entender leitores mutantes”, argumenta Dolores Prades , editora da revista Emília

Em sua fala no quarto encontro do “Ciclo de Debates” sobre 5ª edição da Retratos da Leitura, a especialista atribui a mutação à conectividade e aos novos conteúdos literários, que rompem com o cânone e agenciam novas formas de produzir e compartilhar literatura. 

A retomada da oralidade é uma das principais características que conectam a leitura literária e a comunidade leitora nos dias de hoje. Foi esse o cerne da fala de Dolores Prades , publisher da Emília e Diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação, durante o quarto encontro do “Ciclo de Debates: o que nos diz a 5ª edição da Retratos da Leitura no Brasil”, realizado pela Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural. 

Em sua análise sobre a pesquisa, Prades  refletiu sobre quem eram e o que seriam os chamados “leitores mutantes”, argumentando que a mutação se apresenta na verdade no conteúdos que têm sido produzidos na rede, em que se verificam o compartilhamento constante de processos criativos e a auto edição dos próprios projetos. “O jovem leitor hoje lê e escreve muito, é impressionante a relação fértil e criativa destes jovens com a escrita. Daí, inclusive, a força da batalha dos versos”, destacou a editora, para quem o surgimento e difusão do SLAM e da poesia falada marcam um dos cenários literários contemporâneos mais férteis – e confirmam que a potência da leitura literária na atualidade reside na oralidade.

Em sua fala, Dolores Prades  mencionou os trabalhos de José Miguel Tomasena, escritor, jornalista e pesquisador mexicano cuja produção intelectual flerta em forma e conteúdo com as interações digitais. Para entender o que ocorre no universo do livros e da literatura hoje em dia, Tomasena argumenta que se verifica a coexistência de duas lógicas: de um lado, um mundo editorial mantendo a mesma prática de décadas atrás, sem grandes mudanças; e do outro lado, leitoras e leitores cuja lógica mudou – com o advento dos meios de comunicação digital em rede, a circulação não apenas se ampliou, como também passou a ter no “amigo seguidor” o seu principal perfil influenciador, subvertendo os processos tradicionais de marketing das editoras. “O primeiro ponto a considerar é que falar em leitores mutantes significa dizer que vivemos em um mundo mutante, mediado, mediatizado, onde o que caracteriza as relações é a conectividade nas redes”, argumentou Prades , destacando ainda a intensidade desse fenômeno no contexto da pandemia do COVID-19, em que as relações mediatizadas e, portanto, as experiências da leitura digital, ampliaram a comunidade de leitores digitais. 

DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO E LEITORES EM TRANSIÇÃO

A editora destacou em sua fala que, de acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 80% das leitoras e leitores utilizam a internet no seu dia a dia. Os dados também apontam que setores como C e D aumentaram seu uso de internet de 21%, em 2015, para 45% em 2019, o que indica que a ampliação do acesso a rede teve um impacto notável na formação de uma comunidade leitora digital, através da qual se afetam novos leitores digitais, novos autores e novos formatos – mais do que nunca, os conteúdos se adaptam e se relacionam com novas formas de compartilhamento. 

Sobre tais leitores digitais, Prades  destaca o seu perfil: são leitores em transição, obrigados a se adaptar a um novo contexto essencialmente mediatizado. “Eles lêem baixando gratuitamente os materiais de internet, usam como dispositivo principal o celular e realizam uma leitura em trânsito. Com exceção da geração born digital, todos nós como leitores somos obrigados a nos adaptar a este perfil, por necessidade ou para usufruir de vantagens da internet”, argumenta.

Entretanto, apesar dessa adaptação à rede ser uma das principais características dos leitores mutantes e da nova realidade literária, a editora não enxerga nesse cenário o fim do livro físico, já que no que se refere aos livros digitais, a pesquisa Retratos aponta para o hibridismo entre ambos. Neste sentido, Prades  analisa que a tendência lenta de crescimento deste perfil leitor indica outras proporções, onde a convivência e a divisão dos segmentos de cada um ficam cada dias mais claras. “Há exemplos de poetas que foram produzindo e publicando na internet, e que, depois de publicar, fizeram o livro. E esse livro foi feito e vendido em papel, apesar de já ter sido lido nas redes”, pontua. A poesia, por sinal, é um dos gêneros literários mais consumidos pelos leitores mutantes, em que pese sua facilidade e seu diálogo característico com a imagem e a fala, tão pertinentes ao contexto das redes sociais. 

COMPARTILHAMENTO DE PROCESSOS E COMUNIDADES LEITORAS

A mediação digital da experiência literária também se desdobra no agenciamentos e difusão de novos autores e novas práticas. Dolores Prades  destaca o trabalho do poeta Messé Andarilho, autor que escreve seus livros no celular, nos momentos em que se encontra no transporte público. “Isso proporciona uma outra relação com a visibilidade do texto, a velocidade de escrita, é uma outra experiência”, pontua. Além disso, essa mesma mediação digital também é responsável por outro fenômeno literário crescente: a formação de enormes comunidades que seguem autores, séries e personagens em eventos multitudinários –  a exemplo do fenômeno de séries literárias como Harry Potter ou encontros de leitores de HQ. 

Tais expansões da experiência da literatura, tão típicas da formação de comunidades digitais, ampliam-se sobretudo tendo em vista novos conteúdos. Diversidade, rompimento do cânone e produção periférica, argumenta Prades, seriam as melhores palavras para descrever esse panorama, onde conteúdo e forma se potencializam e resultam em produtos culturais distintos aos do mercado tradicional. Em paralelo, verifica-se também um novo fenômeno que é a “narrativização do social”, fruto da intensa conexão em torno de ideias entre o público digital e a utilização das redes sociais, em que a própria experiência cotidiana é em algum grau narrativizada através de imagens que circulam numa linha do tempo. 

A LITERATURA E A REDE: COEXISTÊNCIA

O surgimento de leitores mutantes, cuja experiência literária tem sido essencialmente mediada pelo digital, em nada implica o fim da literatura impressa. Por outro lado, argumentou Prades, a internet sozinha não é sinônimo de acesso a conteúdos literários. O que coloca em vista o desafio permanente, na formação deste leitor, de promover o estímulo adequado para despertar nele a iniciativa da leitura literária. “Hoje sabemos que os livros digitais para a infância estão mais para um jogo do que para um livro. Neste caso, se os adultos responsáveis não desgrudarem do celular, certamente essa criança terá mais dificuldades de se tornar leitor e de ver o livro como objeto familiar”. 

Há, portanto, de permanecer nesta experiência digital, a valorização dos laços de afeto e de troca que a literatura ainda supõe, garantindo a formação do itinerário do leitor, e neste caso, destaca Prades , “o compartilhamento do objeto livro, a continuidade, as culturas, os silêncios, o foco do olhar, são todos momentos decisivos de formação de um futuro leitor literário”.

Ainda assim, a editora encerrou sua fala enfatizando a potência da internet dadas as conexões que ela possibilita para colocar leitores em contato com a literatura, e caracterizando-a majoritariamente como um dispositivo de democratização da mesma, por facilitar uma tendência natural dos leitores: o seu desejo pelo encontro e pela superação das distâncias que, nas palavras de Prades , “faz com que se sintam menos sozinhos”.