“Temos dois brasis: o Brasil leitor e o Brasil não leitor”

Confira a entrevista da coordenadora do Instituto Pró-Livro, Zoara Failla para o portal Abrelivros. Zoara, defende a ampliação do acesso ao livro e políticas integradas entre os ministérios da Educação e da Cultura em favor da leitura. Para ela, a próxima pesquisa “Retratos da Leitura ”poderá trazer aumento de leitores entre as classes A e B, mas uma redução importante entre alunos de escolas públicas, que dependem da biblioteca escolar para ler. Ela vê perdas inevitáveis para o Brasil, tanto em aprendizado quanto em produtividade, com profissionais menos capazes de interpretar e de expressar o que pensam.

Por que é importante facilitar o acesso ao livro para os estudantes?

O Instituto Pró-Livro realizou, com o Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) a pesquisa Retratos da Leitura em Bibliotecas. A amostra eram escolas que, segundo a Prova Brasil, tinham bibliotecas. O objetivo era mostrar os ganhos, em tempo de aprendizagem. O que identificamos é que houve avanço de até um ano e meio no aprendizado dos alunos que tinham à disposição uma biblioteca funcionando regularmente. Verificamos avanços também em matemática, ou seja, é um ganho global no aprendizado, não somente em língua portuguesa.

A pesquisa “Retratos da Leitura”, do Instituto Pró-Livro, apontou que 58% dos estudantes do Ensino Fundamental I e II dependem das bibliotecas escolares para lerem as obras indicadas pelos professores, mas um levantamento do ministério da Educação apontava, em 2019, que 60% das escolas públicas brasileiras não têm bibliotecas. O que precisa e o que pode ser feito para mudar esse quadro?

Temos de olhar para as políticas públicas. Elas já foram formuladas, mas precisam ser aplicadas. Até 2020 deveríamos ter a universalização de bibliotecas, todas as escolas deveriam ter a sua. No entanto, temos, pelo menos, 60% das escolas públicas sem bibliotecas. Em cidades muito pequenas, em unidades de ensino que não tenham estrutura para ter uma biblioteca, é preciso pensar em alternativas. Pode ser um veículo, um ônibus que seja uma biblioteca itinerante, talvez. É fundamental que o aluno tenha contato com o livro e com a biblioteca. É importante ele acessar o local e ter em mente que existe um ponto de acesso ao conhecimento, onde ele pode aprofundar o saber.

É preciso pensar em como garantir a biblioteca escolar e também como facilitar a chegada do livro à casa do aluno, para que a família tenha a possibilidade de ler. A família tem papel fundamental na influência sobre o gosto pela leitura. Os jovens leitores relatam que os pais liam para eles na infância.

Precisamos lembrar que o professor também precisa da biblioteca. Ele também lê pouco. O perfil leitor do professor é muito parecido com o da maioria dos brasileiros. Ele lê bíblia, lê autoajuda. Como é que esse professor desenvolve atividades significativas e atraentes para os alunos, para tirar esses alunos dos games e das telas? O professor também tem dificuldades de acesso ao livro. Primeiro porque, às vezes, ele tem dupla jornada, nem todas as escolas têm bibliotecas e as bibliotecas públicas não estão próximas e têm horário restrito de funcionamento.

Seria importante que as bibliotecas das escolas fossem abertas ao público, para que a população pudesse frequentar, inclusive nos fins de semana. O que pode garantir isso? Políticas públicas. A sociedade tem um papel importante nisso. Ela precisa se mobilizar para exigir a execução dessas políticas e de forma que elas sejam pensadas até a execução, para não haver, por exemplo, problemas orçamentários.

A pesquisa também mostrou que o Brasil perdeu 4,6 milhões de leitores entre 2015 e 2019, no entanto, pesquisa Nielsen Bookscan, divulgada pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), mostrou aumento de 30% na venda de livros, em 2021, em relação a 2020. Como interpretar esses números?

Fizemos uma pesquisa na Bienal do livro de São Paulo, em 2022 e ficou claro que, também no campo da leitura, temos dois brasis: o Brasil leitor e o Brasil não leitor. Se olharmos para o Brasil não leitor ou aquele Brasil que depende do acesso facilitado eu acho que vamos ter uma redução no percentual de leitores, principalmente entre estudantes que dependem da biblioteca da escola para ter acesso ao livro. Primeiro porque não tivemos aulas presenciais no período mais crítico da pandemia. As bibliotecas estavam fechadas. Certamente teremos uma redução de leitores entre os alunos de escolas públicas. No entanto, se olharmos, para a população das classes A e B, para aqueles que já são leitores, sem dúvida o número aumentou.

Na pesquisa feita na Bienal perguntamos qual foi o impacto da pandemia na leitura. A maioria informou que passou a ler mais, que a leitura ajudou na qualidade de vida naquele momento de solidão, de isolamento. O livro foi uma companhia dentro de casa. O leitor que tinha capacidade de consumir deu ainda mais importância ao livro durante a pandemia.

O outro dado importante e que apareceu na pesquisa da Bienal é a influência das redes sociais. Eu acho que também como resultado da pandemia. O crescimento dos booktokers se reflete nas vendas. Os livros mais vendidos na Bienal foram os que mais haviam sido citados pelos influenciadores digitais. Existem outras redes sociais importantes, mas o Tik Tok é um fenômeno, porque ali são experiências pessoais de leitura e não profissionais. Esses leitores alavancam as vendas no público de 14 a 20 e poucos anos.

Falando de pandemia, políticas educacionais e de cultura, o que o Brasil perdeu nos últimos anos e o que precisa recuperar, reconstruir?

Tivemos um desmonte das políticas públicas. Elas são o grande guarda-chuva para formação do professor, para a escola. O livro de literatura na escola é outro plano que também está desmontado. O fato de um ministério da Cultura passar a ser uma secretaria e não olhar para a questão do livro, da literatura foi muito complicado. É uma desvalorização da leitura.

Houve um projeto de desvalorização do pensamento, do conhecimento, no aspecto geral. Porque quanto menos conhecimento, ciência e informação você tem é mais fácil de você ser manipulado. Claro. É um projeto.

Que consequências você vê a partir da baixa execução do PNLD? As aquisições do programa deixaram de fora os livros de literatura e os de Acompanhamento de Práticas.

Certamente teremos uma redução no percentual de leitores nas faixas de cinco a 20 e poucos anos. E qual o impacto disso no desenvolvimento social e humano de uma sociedade? Eu acho que vamos ter um atraso.

O Brasil já estava nos últimos lugares das avaliações internacionais, como o PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos). A alfabetização vai piorar, e a nossa classificação também. Isso impacta no desenvolvimento humano, no desenvolvimento social e até econômico. Impacta até na vida profissional das pessoas. Certamente teremos profissionais com menos conhecimento e com menos capacidade de aprender. Acho que teremos quedas na capacidade de produção, na competência profissional das pessoas por essa dificuldade de construir ideias, de construir conhecimento, de conseguir verbalizar aquilo que está pensando.

Sobre a criação da Secretaria de Formação, Livro e Leitura, no ministério da Cultura, como você avalia essa medida do novo governo?

Importante a recriação do Ministério da Cultura e de uma secretaria voltada a políticas do livro, leitura e literatura, que foi desestruturada nos últimos anos. Essa instância é de extrema relevância para pensar e implementar as políticas que poderão resgatar o Plano Nacional do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (PNLLLB), nortear as ações e orientar a criação dos planos estaduais e municipais, tão importantes para mobilizar toda a sociedade e comunidades, na garantia do direito ao acesso ao livro, para toda a população que não teve a oportunidade de descobrir o gosto pela leitura. O Fabiano Piúba (titular da Secretaria de Formação, Livro e Leitura do ministério da Cultura) é muito competente e construiu uma trajetória bem sucedida na área, além da experiência, no mesmo ministério, nas gestões anteriores, o que certamente o habilita para encarar, com sucesso, esse desafio. Estamos esperançosos no resgate da Lei Castilho (Lei nº 13.696/2018, que institui a Política Nacional de Leitura e Escrita).